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Carta: Como está a contabilidade hoje?

  • Contador SC
  • 1 de dez. de 2020
  • 10 min de leitura

Os contratos de execução a longo prazo eram, inicialmente, registrados de forma que a apuração dos lucros se desse apenas ao final. Assim ocorre com fabricante de grandes máquinas, de construção de rodovias, de produção de navios etc., produzidos por encomenda e com contratos a preços já ajustados desde o início. Nesse caso, a prática era a empresa ativar os custos de produção e só os baixar quando da entrega do produto, quando reconhecia a receita.


Só que, para contratos de dois, três ou mais anos, isso significava o diferimento do reconhecimento do lucro que produzia: para os germânicos, uma possibilidade de só pagar o imposto sobre o lucro ao final; para os latinos, idem, até que a legislação começou a mudar. O Fisco passou a não gostar da ideia. Por exemplo, no Brasil, até 1977, era assim: lucro só no final e tributo também; mas o Decreto-Lei no 1.598 desse ano passou a exigir, para os contratos a longo prazo, algo diferente. E passou o Fisco então a exigir, no Brasil, o que os anglo-saxônicos já faziam havia muito tempo.


Imaginem para os investidores ingleses e norte-americanos esperar a apuração do lucro só quando do final do contrato, sem saber se o desempenho estava sendo bom ou não ao longo do tempo. Que tal os acionistas terem que esperar todo esse período para avaliar o desempenho dos negócios? Obviamente os saxônicos criaram uma norma contábil (os contadores, não a lei) regulando o seguinte: desde que com dados confiáveis, o lucro deveria ir sendo reconhecido à medida em que se executasse o contrato (Percentage of Completion – POC).


Os germânicos passaram a dizer que os ingleses apuravam lucro por aproximação, sem segurança, porque só ao final era possível conhecer o efetivo resultado. Já os ingleses diziam que, de fato, estavam aproximadamente certos, apurando o lucro de cada período e efetuando ajustes por conta de erros nessas apurações, mas que os germânicos estavam exatamente errados por que não apuravam lucro nenhum nos períodos em que se executava o contrato e o lucro apurado quando do seu final era o lucro não desse ano, mas o acumulado de anos anteriores. Logo, todos estariam, individualmente, errados.


Claro que o lucro total final não pode mudar. Afinal, quem vai dizer a verdade será o caixa final, mas os resultados de cada período podem ficar e ficam às vezes muitíssimo diferentes. Outro exemplo: e as depreciações? Para um norte-americano, quando se pergunta “quanto depreciar”, a resposta virá com outras perguntas: Qual o custo de aquisição? R$ 10 milhões? Ótimo. Qual o prazo estimado de duração? Entre 7 e 9 anos? Então sejamos prudentes e utilizemos 7. Qual o valor final de venda? Entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões, então utilizemos R$ 1,5 milhão. Assim, o norte-americano apurará uma depreciação de R$ 10 milhões menos R$ 1,5 milhão a ser recuperada pela venda, ou seja, R$ 8,5 milhões, como a parte do custo a recuperar das receitas de vendas, de aluguéis, de juros etc., ou seja, como a depreciação total. E ser reconhecida sistematicamente essa depreciação por 7 anos; se em linha reta constante, R$ 1,21 milhão por ano.


Para um germânico, a pergunta é a mesma, mas a resposta é diferente. A única coisa em comum é o custo de aquisição. Diz o germânico: Se o valor residual esperado é de 15% do valor de custo, por conservadorismo, vamos tomar como sendo R$ 0. Melhor depreciar tudo para não correr risco de ir para a cadeia. E o prazo? Se é entre 7 e 9 anos, fica-se com algo significativamente inferior à hipótese mais pessimista. Então, 5. Costuma-se falar, e não é muito brincadeira, que fazem assim: média aritmética entre 7 e 9: somam-se os dígitos, o que dá 16, e divide-se por 3 (isso mesmo, por 3, e não por 2), o que dá 5,33 anos que, arredondados, são 5. Assim, a depreciação anual será de R$ 10 milhões divididos por 5 = R$ 2 milhões.


E para os latinos? Faz-se a mesma pergunta e a resposta era (e ainda é em muitos casos, infelizmente): deixe-me consultar a tabela do imposto de renda! Outro exemplo, na área de seguros: os germânicos apuram o lucro dos contratos apenas no primeiro dia após o final do contrato! Já os saxônicos distribuem os lucros estimados durante o prazo dos contratos.


Mais um exemplo sobre provisões: os germânicos chegaram a ter (a Suíça ainda tem) uma tal conta de Provisão para Riscos Gerais, de uso discricionário da administração, desde que feita para proteção ao credor! Sabiam disso? É melhor agora esquecer. Ou seja, para eles, a provisão era quase que totalmente discricionária. Para muitos latinos, registradas conforme sua dedutibilidade (que coisa horrível, não?). Para outros, as provisões no passivo são reconhecidas quando julgado provável um futuro desembolso de caixa por conta de algo ainda a se aclarar no futuro.


Por toda essa confusão, e por essas diferenças doerem no bolso das multinacionais de alguns grandes investidores, de muitos bancos etc., começou-se a pensar em como reduzi-las. E daí passou-se a pensar na convergência das normas contábeis. E esse assunto passou a permear muitas discussões nos congressos contábeis, entre os diversos legisladores no mundo todo, nas grandes discussões econômicas etc.


A Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a ter um grupo que tentou isso (participei por um tempo, até me dar conta de que não era, absolutamente, o lugar apropriado, porque tudo é muito politizado e sem força coercitiva para a implantação, apesar de normas de boa qualidade técnica). E aí aconteceu algo muito interessante: nos EUA, onde as normas eram feitas pelo Instituto dos Contadores (Accounting Principles Board – AICPA), os investidores e os intermediários do mercado acionário começaram a reclamar porque esse instituto é formado por contadores, controllers e auditores, todos remunerados pelas empresas; e diziam que os interesses dos investidores estavam sob risco. Só se regulamentava conforme interesse das empresas.


Nos EUA, como disse antes, não havia e não há na lei como fazer Contabilidade; apenas se diz que as companhias abertas têm que seguir o que a CVM de lá (Securities Exchange Commission – SEC) dizia (e diz). Só que a SEC fazia a delegação da elaboração das normas ao AICPA.

Porém, o Congresso ouviu o clamor dos investidores e exigiu que a SEC mudasse, e ela continuou não determinando as regras contábeis, mas mandou que se constituísse um outro órgão formado por quem preparasse as demonstrações contábeis, por quem as auditasse, por quem as analisasse e por quem decidisse sobre elas (investidores), bem como por representantes da academia.


Assim foi criado o Financial Accounting Standards Board (FASB), com essa composição, em 1973. (Diziam que a Contabilidade era muito importante para ficar só na mão dos contadores – até hoje não sei se é elogio ou não…) E o FASB já nasceu com não sei quantas pessoas em tempo integral, com não sei quantos milhões de dólares, ou seja, todo-poderoso. Com isso, quando viram o que estava para acontecer, os europeus, temerosos de que o FASB se transformasse no grande órgão regulador mundial, criaram em regime de urgência o International Accounting Standards Board (IASB) – no início, era Committee (IASC). E com a palavra International lá. E conseguiram pôr em pé esse organismo algumas semanas antes da abertura oficial do FASB.


O mundo é assim, o da Contabilidade, também. Técnica, medo, orgulho, inveja, respeito e tudo mais – tudo devidamente misturado. E o que era considerado altamente improvável: os europeus, apesar de todas as diferenças, resolveram, no IASB, entrar em acordo: Contabilidade universal não poderia ser a fiscal dos latinos, nem a exageradamente conservadora germânica, e tinha que seguir a filosofia anglo saxônica. Até montaram a sede em Londres.


Assim nasceram praticamente juntos o FASB e o IASB, originariamente muito iguais, com a mesma filosofia: prevalência da essência econômica sobre a forma, quando as duas não se apresentam convergentes; primazia dos balanços consolidados sobre os individuais. E normas contábeis baseadas na filosofia de serem curtas, principiológicas e não baseadas em regrinhas práticas de faça isso, faça aquilo. Hoje, infelizmente, nem tudo está assim. Costumo, brincando, falar o que penso: antes as normas eram feitas por contadores que, sem remuneração, arrumavam algum tempo para escrevê-las; logo, curtas, principiológicas.


Por outro lado, quando se cria um órgão com dezenas ou centenas de pessoas empregadas só fazendo isso, resta apenas uma coisa: escrever normas detalhadas, cada vez maiores, cada vez introduzindo mais detalhes sobre o que já está normatizado etc. Isso ocorreu principalmente no FASB, que tem hoje um absurdo número de regrinhas. Tanto que a Lei Sarbanes-Oxley, nos EUA, na virada do século XX para o XXI, chegou ao ponto de exigir que, daquele momento em diante, o FASB tinha que ser mais principiológico, o que vem de certa forma acontecendo nos últimos anos.


Mais recentemente, o IASB continua cada vez mais escrevendo normas menos principiológicas, mais detalhadas e parece que com dificuldade de diminuir esse ritmo. Por outro lado, o mundo econômico e jurídico vai ficando cada vez mais complexo, os riscos vão se alterando significativamente, novos instrumentos financeiros e novas formas de negócios vão aparecendo, de forma que tudo se junta e haja tempo para se manter atualizado. Aliás, alunos e alunas, a escola só ensina o básico, básico mesmo. Ainda mais em um mundo cada vez mais detalhadamente normatizado. E, às vezes, a escola se esquece de ensinar a teoria, os princípios, os conceitos, gastando tempo demais com as normas propriamente ditas. Para corrigir isso, o grande esforço é pessoal e eterno enquanto o profissional dure.


Ah, quase ia me esquecendo de algo muito importante: em 1976, o Brasil, que até então tinha uma legislação de mercado e contábil muito voltada ao credor (influência franco-italiana, é claro), acompanhou uma movimentação que também a Europa continental vinha seguindo: desenvolver mais o mercado de ações e fugir um pouco da concentração bancária. Com isso, promulgou-se a Lei das Sociedades por Ações, Lei 6.404, em final de 1976. E, na parte contábil, o que se fez foi introduzir aqui basicamente os princípios da Contabilidade norte-americana! Que mudança! O Regime de Competência foi levado muito mais a sério (sabiam que o imposto de renda sobre o lucro de um ano só era juridicamente devido no ano seguinte e, por causa disso, as empresas não o registravam ao final do ano da geração do lucro? “Legalmente ainda não o devo.” Que atraso).


Por conta dessa evolução, o Brasil foi o primeiro país no mundo, depois dos EUA, a implantar a Demonstração das Origens e Aplicações de Recursos (DOAR), hoje substituída pela dos Fluxos de Caixa; só os norte-americanos a tinham como obrigatória. O Brasil foi o primeiro país não anglo-saxônico do mundo a adotar a consolidação de balanços, no caso para as companhias abertas. Foi o primeiro não anglo-saxônico a adotar a Equivalência Patrimonial. Substituiu a Demonstração de Lucros e Perdas (nem queiram ver que bicho feio é esse), da legislação anterior, por duas: Demonstração do Resultado e Demonstração de Lucros ou Prejuízos Acumulados (até então era tudo em uma única demonstração: saldo dos lucros ou prejuízos passados com lucro bruto – vendas não eram obrigatoriamente divulgadas – e com formação e reversão de reservas, despesas, distribuição de dividendos. Uma loucura.).


Assim o Brasil passou a ter uma das melhores contabilidades do mundo, suplantada exclusivamente por EUA, Inglaterra e alguns outros anglo-saxônicos. Muito melhor do que a alemã, a francesa, a italiana, a japonesa etc. Algo muito interessante: como a FEA-USP era a única escola brasileira que ensinava a Contabilidade norte-americana, logo fomos procurados pela CVM, no início de 1977, para escrever o livro Manual de contabilidade das Sociedades por Ações, hoje Manual de contabilidade societária. Foi a CVM quem financiou a primeira edição.


E foi emitido no ano seguinte ao da Lei das S.A., em 1977, o Decreto-Lei no 1.598 que, além de fazer alguns complementos contábeis, teve o papel principal de modificar toda a legislação fiscal para que seguisse a Contabilidade da Lei das S.A. Essa lei havia determinado a segregação entre Contabilidade e Fisco, como na Inglaterra e nos EUA (vejam o art. 177, § 2o original). Daí a criação do já mencionado LALUR pelo Decreto-Lei no 1598 em 1977. Pena que, no ano seguinte, época da ditadura militar, essa segregação sofresse um passo atrás porque a Receita Federal da época, não tendo gostado disso, exigiu que só poderia sofrer ajustes no LALUR, diminuindo o lucro tributável, o que tivesse prévia e expressa autorização da própria Receita.


Com essa interferência fiscal, registrar uma depreciação por valor contábil na escrituração mercantil e outra fiscal no LALUR só poderia ser feito se isso aumentasse o lucro tributável. Caso contrário, não. E, se aumentasse o lucro tributável, poder-se-ia perder o direito à dedutibilidade futura da parcela não aproveitada. Logo, todo o mundo seguia simplesmente a regra fiscal. E assim continuamos com muitos outros exemplos.


Por causa dessa interferência fiscal, as normas contábeis da CVM e também do CFC passaram, com o decorrer do tempo, a não sofrer evolução porque introduzir determinadas boas normas significaria aumentar os tributos. Ou melhor, quando não havia interferência fiscal, novas normas eram emitidas detalhando a Lei das S.A. ou dando tratamento às novas operações que não existiam ou não eram significativas quando da implantação dessa Lei. A Comissão Consultiva de Normas Contábeis da CVM, citada em outra carta, elaborou e a CVM (e também muitas vezes o CFC) aprovou normas de excelente qualidade, como benefícios a empregados, provisões e outras.


Porém, só aquelas que não implicassem aumento da tributação e, também, desde que não confrontassem a própria Lei (algumas normas novas tanto norte-americanas quanto do IASB produziram evoluções não previstas nessa Lei e isso criou muitos problemas). Promoveu-se então, com a própria CVM e outros interessados, ampla campanha para a modernização da Lei das S.A. durante as décadas de 1980 e, principalmente, 1990. E em 1999, a CVM apresentou uma proposta de projeto de Lei, fundamentada naquela Comissão Consultiva, ao Ministério da Fazenda, aproximando mais ainda a Contabilidade brasileira da anglo-saxônica que avançara (a nossa muito pouco), e propondo novamente a segregação total entre Contabilidade e Fisco. O projeto acabou sendo aprovado apenas no final de 2007, Lei no 11.638, e, com legislações posteriores, simplesmente se implantaram, de forma completa a partir de 2010, no Brasil, as Normas Internacionais de Contabilidade e se conseguiu, finalmente, a neutralidade tributária que tanto se queria.


A União Europeia já havia, em 2005, obrigado todas as companhias com títulos e ações no mercado de lá a fazerem suas demonstrações consolidadas conforme essas mesmas normas internacionais (chamadas de International Financial Reporting Standards – IFRS). Contudo, o Brasil as adotou também para as demonstrações individuais, com exceção para as microempresas e empresas de pequeno porte. Hoje, há um total de 140 países que admitem total ou parcialmente, ou então exigem, essas normas.


Os EUA continuam fora dessa convergência com o IASB, apesar de que diversas normas recentes têm sido produzidas em conjunto e emitidas de forma muito similar. E assim estamos nós, hoje, ainda em um processo de convergência com reduções fenomenais entre as disparidades originárias daquelas ênfases de Contabilidade voltada ao credor, ao Fisco ou só ao investidor. Muito ainda há que se caminhar.


ELISEU MARTINS

Eliseu Martins é Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, Professor do Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA/USP há mais de 40 anos, cofundador da Fipecafi – Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras, Parecerista na área contábil, ex-consultor e ex-conselheiro de inúmeras empresas. Ex-Diretor da CVM (dois mandatos), ex-diretor do Banco Central. Autor ou coautor de diversos livros, entre os quais Contabilidade de custos: exercícios, Manual de normas internacionais de contabilidade, Avaliação de empresas: da mensuração contábil à econômica e Métodos comparados de custeio, publicados pelo GEN | Atlas, além de Manuais de contabilidade e de custos de diversas instituições financeiras. Também participou de capítulos de Comentários à Lei das Sociedades por Ações, de Modesto Carvalhosa, e do livro Código Civil Comentado – Direito de Empresa, de Priscila M. P. Corrêa da Fonseca e Rachel Sztajn.


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