Compra e venda de empresas sob controle comum
- Contador SC
- 2 de dez. de 2020
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Quando há compra e venda de empresas (parte ou o todo do capital) entre entidades denominadas “terceiras”, não pertencentes ao mesmo grupo econômico, sabemos que os processos de avaliação são normalmente desenvolvidos por profissionais e o valor do negócio tende a ser um valor justo. É a tal da transação arm´s length. E nessas operações (sejamos simples e otimistas) é comum surgir o goodwill, a mais valia dos ativos líquidos da adquirida, e a equivalência patrimonial contábil. Tudo conforme o CPC 15 – Combinação de Negócios. Tudo normal.
Mas as normas contábeis internacionais são ainda totalmente omissas sobre como fazer esse registro quando a vendedora e a compradora são integrantes do mesmo grupo, estão sob controle comum. Por exemplo, a empresa A é dona de B e dona de C e, por algum motivo, surge a necessidade e/ou interesse de A vender C para B; assim A passa a controlar B e esta passa a controlar C. (Na dúvida, faça você o organograma para acompanhar.)
Como não há normas contábeis estabelecidas a respeito dessas transações entre entidades sob controle comum (o CPC 15 é obrigatório apenas para negociações entre partes efetivamente independentes), muitíssimos casos temos tido no Brasil de venda por um valor que se espera seja o justo nos quais a contabilização é a normal, ou seja, como se fosse negociação entre partes independentes. Assim, há registro de lucro na entidade vendedora (A) e mais valia e ágio na adquirente (B). Esse é o famoso caso do “ágio interno” (ou, tecnicamente mais correto, ágio intragrupo), cuja dedutibilidade fiscal só pode ser feita agora na baixa do investimento, não mais sendo possível utilizar a hipótese da amortização sistemática para esse fim. (O número enorme de transações desse tipo foi quando o ágio era amortizável fiscalmente – não contabilmente, é claro – e o lucro na vendedora era diferido…)
Muitos argumentam (e entre eles fortemente a CVM) no sentido de ser essa contabilização uma geração de lucro interno entre entidades sob controle comum, sem validação por terceiros do preço e do negócio, bem como uma geração de ágio também interno na adquirente que de fato não pagou para terceiros. E argumentam ainda que o lucro da vendedora (A) precisa ser eliminado na consolidação contra o ágio surgido na adquirente (B). Interessante: de fato a operação vale contabilmente para fins individuais, mas não para fins de consolidação. E isso fortalece essa crítica.
E temos tido também casos em que a transferência é feita pelos valores contábeis e, assim, não há resultado na vendedora e nem ágio (nem mais valia) na adquirente. Logo, ocorre uma mera transferência da conta de investimento (total ou parcial) de A para B no nosso exemplo. E o valor da negociação também segue os próprios valores contábeis, ou seja, o pagamento se dá por esse valor, e não pelo valor justo.
São os dois extremos: reconhecer a operação sempre pelo valor justo com pagamento pelo valor justo ou sempre pelos valores contábeis e o pagamento também por esses valores. A prudência levada ao extremo faria convergir para a segunda alternativa e a representação mais fidedigna do patrimônio talvez fosse a primeira alternativa, mas sempre com as chances de dúvidas por alguns, ou por muitos, sobre a efetiva validade do valor da negociação.
Não haveria um meio termo? Alguns advogam um tratamento complexo mas que consideram informativo: a negociação (o pagamento) seria pelo valor justo, mas a contabilização seria de tal forma que não geraria lucro na vendedora (A) e nem ágio na adquirente (B). Como se contabilizaria então para se chegar a esse objetivo?
O montante excedente ao valor contábil da vendedora (A) seria nela contabilizada não como lucro, mas como uma conta retificadora do investimento em (B), como se tivesse havido uma devolução de capital por parte da adquirente (B). E a adquirente (B) registraria o ágio não no seu ativo, mas como redução do seu patrimônio líquido como se tivesse sido devolvido capital à controladora (A). Assim, o dinheiro utilizado para a transação poderia ser diferente do valor contábil do investimento negociado, mas não se geraria lucro na vendedora e nem ágio na adquirente.
Mas isso traz uma consequência muito discutível: a adquirente (B), ao ter que contabilizar o valor pago (para A) acima do valor contábil da adquirida (C), provocaria, de fato, uma redução no seu patrimônio líquido contábil (de B). Esquisito, não? E isso porque deduziria do seu ativo o dinheiro desembolsado que é superior ao investimento em C que receberia! A entidade negociada (C) não mudaria seu balanço em nenhuma dessas operações, é claro.
E a vendedora A não mudaria o total de seu ativo nem de seu patrimônio líquido originais, mas teria uma compensação: o caixa que entra superior ao valor contábil do investimento em C que baixa é subtraído do investimento em B. Mas seu patrimônio líquido continuaria o original. Parece que para A é uma boa solução, mas para B…. Além disso, quer-me parecer que devolução de capital é apenas quando a transação é feita por valor superior ao valor justo da coisa recebida. Logo, se o valor da operação é justo parece não ser uma boa alternativa.
E haveria, nessa hipótese, um grande problema: se C tem ou não tem sócio minoritário, dá tudo na mesma, tanto faz qual alternativa seja utilizada, porque seu balanço não muda e a composição de seus ativos também não. Mas se B tem minoritário, verá o patrimônio líquido de sua investida sendo diminuído contabilmente porque o caixa que sai é maior do que o investimento que aumenta. E se A também tem minoritário, o problema é bem menor: o patrimônio líquido de A continua o mesmo; mas a composição do ativo fica diferente: seu investimento em C desaparece e entra o caixa (valor maior), mas a diferença é tratada como redução da participação em B, e não como aumento do seu PL.
Haverá uma representação fidedigna com B diminuindo seu patrimônio líquido se a troca do investimento em C for feita efetivamente por seu valor justo? Aparentemente não há muito sentido em se ter, como consequência dessa contabilização, essa redução do patrimônio líquido de B. Se o valor é justo para representar a transação, faz sentido considerar parte do valor pago a A como devolução de capital para A?
Ou deveria B, se houver o genuíno minoritário nela, fazer a contabilização pelo valor justo, registrando o ágio? Assim seu PL não seria reduzido. E A poderia não reconhecer o lucro, tratando-o como redução de seu investimento em B? O registro do lucro de A como seu efetivo resultado não parece ser mesmo uma alternativa adequada tecnicamente por ser transação intramuros. Mas se A tiver minoritários, não teriam eles direito a ver reconhecido o lucro e pago o dividendo? Ou deveria ser utilizada a lógica de que para ele, no consolidado, nada teria mudado?
Mas o pior vem agora: e se fosse o contrário: A é dona de B que é dona de C, e B vende seu investimento em C para A. Se B tiver minoritário genuíno, iria B não reconhecer o lucro nessa operação? Seria justo e legal esse minoritário ver seu ativo representado pelo investimento em C ser transferido para A, mesmo que a valor justo, mas ver o lucro não reconhecido e não receber seu dividendo? Mas tem o pior do pior: seria justo e viável fazer essa transação a valores contábeis e B receber apenas o valor contábil do investimento em C como dinheiro? E se B reconhecer como lucro apenas a participação do minoritário? Só para especular.
E se existirem minoritários genuínos em A, B e C? Já analisou as dificuldades nessa contabilização? Não é à toa que o IASB está há muitos anos debruçado sobre esse problema sem chegar a uma conclusão aceitável generalizadamente. Mas está tentando agora. Preste atenção no que virá em breve como pensamento dele. Mesmo porque há outras variantes aqui não tratadas.
Até hoje, no mundo e no Brasil, por falta de norma do IASB, todos os países, mesmo que seguindo as IFRSs, têm que se virar e procurar o método de contabilização que melhor reflita, na visão dos administradores, o patrimônio e sua mutação derivante de compra e venda de participação societária dentro de entidades sob controle comum. Mas a diversidade de entendimento produzindo práticas divergentes tem provocado sérias discussões e até conflitos entre gestores, contadores, auditores, órgãos reguladores, fisco etc. Será que vamos ter proximamente a solução?
Deveremos voltar a esse assunto com mais detalhes.
Eliseu Martins é Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, Professor do Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA/USP há mais de 40 anos, cofundador da Fipecafi – Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras, Parecerista na área contábil, ex-consultor e ex-conselheiro de inúmeras empresas. Ex-Diretor da CVM (dois mandatos), ex-diretor do Banco Central. Autor ou coautor de diversos livros, entre os quais Contabilidade de custos: exercícios, Manual de normas internacionais de contabilidade, Avaliação de empresas: da mensuração contábil à econômica e Métodos comparados de custeio, publicados pelo GEN | Atlas, além de Manuais de contabilidade e de custos de diversas instituições financeiras. Também participou de capítulos de Comentários à Lei das Sociedades por Ações, de Modesto Carvalhosa, e do livro Código Civil Comentado – Direito de Empresa, de Priscila M. P. Corrêa da Fonseca e Rachel Sztajn.
Fonte: Gennegociosegestao.com.br/
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