Estimação da variação do endividamento em perpetuidades por FCFE
- Contador SC
- 3 de set. de 2019
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Avaliar empresas por fluxo de caixa descontado envolve (i) a projeção dos fluxos de caixa por um horizonte de projeções e (ii) a estimação de um valor residual que capture o valor dos fluxos de caixa além do horizonte de projeções.
Um dos métodos mais usuais para a estimação do valor residual é considerar os fluxos de caixa dos anos além do horizonte de projeções como uma perpetuidade e calcular o seu valor por meio do modelo de Gordon. Para tanto, é necessário estimar (a) um fluxo de caixa base para a perpetuidade e (b) uma taxa de crescimento perpétua.
O objetivo deste artigo é argumentar em favor de uma determinada forma de estimação da variação do endividamento no fluxo de caixa base para a perpetuidade, quando se optar pela abordagem do acionista.
Além desta seção de introdução, o artigo tem: a seção 2 revisitando brevemente as abordagens de fluxo de caixa descontado, a seção 3 apresentando a proposta do cálculo da variação do endividamento e a sua aplicação em um exemplo que considera a empresa uma perpetuidade desde o ano 0, a seção 4 aplicando a proposta no cálculo da perpetuidade após o horizonte de projeção, contexto mais realista e a última seção com as considerações finais.
Avaliação por Fluxo de Caixa
Existem duas abordagens para a avaliação por fluxo de caixa descontado: (1) acionista (FCFE – free cash flow to equity) e (2) firma (operação, negócio, investidores ou FCFF – free cash flow to firm). Embora, para ambas abordagens deva-se trazer a valor presente fluxos de caixa projetados por um custo de capital estimado, para cada uma delas segue-se um raciocínio específico para a composição do fluxo de caixa e do custo de capital.
Para a abordagem FCFE, o fluxo de caixa é composto de:
FCFE = Lucro Líquido + DA – CAPEX – Inv. CGL + Variação do Endividamento
Em que: DA é depreciação e amortização, CAPEX (capital expenditures) é investimento em ativo fixo e Inv. CGL é investimento em capital de giro líquido (CGL).
O custo de capital pode ser calculado, entre outros métodos, pelo CAPM (capital asset pricing model):
re = rf + β x pm
Em que: re é o custo do acionista (cost of equity), β é o beta (medida de risco não diversificável) e pm é o prêmio de mercado.
Para a abordagem FCFF, o fluxo de caixa é composto de:
FCFF = R. Oper. – IR Oper. + DA – CAPEX – Inv. CGL
Em que: R. Oper. é resultado operacional e IR Oper. é imposto de renda operacional.
O custo de capital é calculado normalmente pelo WACC (weighted average cost of capital):
WACC = D/(D+E) x rd x (1 – t) + E/(D+E) x re
Em que: D/(D+E) é a proporção do credor no capital da empresa, E/(D+E) é a proporção do acionista no capital da empresa, rd é o custo da dívida, t é a alíquota de imposto de renda corporativo e re é o custo do equity. Todos os parâmetros do WACC são econômicos, ou seja, a proporção do capital deve considerar o valor econômico da dívida e o valor econômico do equity.
Pode-se agrupar, para ambos os fluxos de caixa (FCFE e FCFF), a parcela “DA – CAPEX – Inv. CGL” em uma única parcela: “- Inv. Líquido” (investimento líquido), sendo assim, o fluxo de caixa do acionista pode ser resumido por:
FCFE = Lucro Líquido – Inv. Líquido + Variação do Endividamento
O fluxo de caixa da firma pode ser resumido por:
FCFF = R. Oper. – IR Oper. – Inv. Líquido
Exemplo Inicial
Para a validação da lógica proposta para o cálculo da variação do endividamento, será considerada, inicialmente, uma empresa que seja uma perpetuidade desde o momento zero. O Quadro 1 detalha as características da empresa (Empresa 1). (Quadro 1: Clique aqui)
(i) Inicialmente, serão calculados o valor da empresa (firm value) e a parte do acionista no valor da empresa (equity value) por FCFF, uma vez para a aplicação desta abordagem não é necessário estimar a variação do endividamento (premissa em análise no artigo). Todas as premissas financeiras da empresa estão concentradas, nesta abordagem, no cálculo do WACC. Por tratar as premissas financeiras (no WACC) separadamente das premissas operacionais (no fluxo de caixa), esta abordagem é de mais fácil aplicação do que a abordagem do acionista, que mistura as premissas financeiras e operacionais no fluxo de caixa.
O fluxo de caixa base da perpetuidade, pela abordagem FCFF, já para o Ano 1, é:
FCFF1 = R. Oper. – IR Oper. – Inv. Líquido = 150,00 – 45,00 – 20,40 = 84,60
O WACC é:
WACC = D/(D+E) x rd x (1 – t) + E/(D+E) x re = 30,0% x 10,0% x (1 – 30,0%) + 70,0% x 15,0% = 12,6%
O valor da empresa (firm value ou FV) é:
FV = FCFF1 / (WACC – g) = 84,60 / (12,6% – 6,0%) = 1.281,82
Consequentemente, a parcela do acionista no valor da empresa (equity value ou EqV) é:
EqV = FV – dívida líquida = 1.281,82 – 30,0% x 1.281,82 = 1.281,82 – 384,55 = 897,27
(ii) Posteriormente, serão calculados o valor da empresa (firm value) e a parte do acionista no valor da empresa (equity value) por FCFE. Embora não seja necessariamente objetivo de quem avalia empresas, a ideia é verificar a conciliação entre as abordagens, pois a conciliação dá o conforto de que as premissas foram adequadamente formuladas para o FCFE, que tem a aplicação mais difícil conforme já mencionado.
Para calcular o lucro líquido, base para o fluxo de caixa do acionista, é necessário estimar a despesa financeira (do ano 1):
Desp. Financ. = Dívida x rd = 384,55 x 10,0% = 38,45
O lucro líquido do ano 1 é:
LL = R. Oper. – Desp. Financ. – Imposto de Renda = 150,00 – 38,45 – 33,46 = 78,08
O último item necessário para o cálculo do fluxo de caixa do acionista é a variação do endividamento. A proposta do artigo é a de que se respeite, todos os anos, a premissa usada no WACC para o participação do credor no capital da empresa (D/(D+E) ou %D). Note que, no ano 0, o FV0 é:
FV0 = FCFF1/(WACC – g)
No ano 1, o FV1 é:
FV1 = FCFF2/(WACC – g)
Mas:
FCFF2 = FCFF1 x (1 + g)
Portanto:
FV1 = FV0 x (1 + g)
Ou seja, o firm value cresce, assim como o fluxo de caixa, a taxa g. Esta conclusão pode ser estendida para os demais anos, não apenas para o FV1 em relação ao FV0.
Portanto, como o firm value cresce g ano-a-ano, a dívida, para respeitar %D constante ano-a-ano, também deve crescer g! Logo, a variação do endividamento para o fluxo de caixa do ano 1 (ano base da perpetuidade) deve ser calculada como:
Dívida1 – Dívida0 = Dívida0 x (1 + g) – Dívida0 = Dívida0 x g
Portanto, substituindo os números do Quadro 1, tem-se:
Variação do Endividamento = Dívida0 x g = 384,55 x 6,0% = 23,07
E o fluxo de caixa base da perpetuidade, pela abordagem FCFE, já para o Ano 1, é:
FCFE1 = LL – Inv. Líquido + Variação do Endividamento = 78,08 – 20,40 + 23,07 = 80,75
Considerando o re (15,0%, conforme Quadro 1), a parcela do acionista no valor da empresa (EqV) é:
EqV = FCFE1 / (re – g) = 80,75 / (15,0% – 6,0%) = 897,27
Consequentemente, o valor da empresa (FV) é:
FV = EqV + dívida líquida = 897,27 + 384,55 = 1.281,82
Verifica-se que os valores (FV e EqV) calculados por ambas abordagens (FCFF e FCFE) estão conciliados e, portanto, a proposta de calcular a variação do endividamento, no fluxo de caixa base da perpetuidade, aplicando o crescimento à dívida do ano anterior, é válida.
A Tabela 1, a título de ilustração, apresenta as projeções para os 5 primeiros anos da perpetuidade (DRE, Balanço Econômico, FCFF, FCFE etc.). (Tabela 1: Clique aqui)
Verifique, na Tabela 1, que a dívida efetivamente varia $ 23,07 ($ 407,62 – $ 384,55), conforme considerado para o cálculo do FCFE.
Pode-se considerar outra premissa para a perpetuidade: o crescimento real não agrega valor, ou seja, o valor presente líquido dos novos investimentos (crescimento real) é zero (pois, o retorno dos novos investimentos é igual ao custo de capital), em linha com a competitive equilibrium theory. Neste caso, pode-se considerar que a empresa crescerá apenas a inflação na perpetuidade e, portanto, ter-se-ia:
(i) para a abordagem da firma:
FCFF1 = R. Oper. – IR Oper. – Inv. Líquido = 150,00 – 45,00 – 0,00 = 105,00
FV = FCFF1 / (WACC – g) = 105,00 / (12,6% – 3,0%) = 1.093,75
EqV = FV – dívida líquida = 1.093,75 – 30,0% x 1.093,75 = 1.093,75 – 328,13 = 765,63
(ii) para a abordagem do acionista:
Desp. Financ. = Dívida x rd = 328,13 x 10,0% = 32,81
LL = R. Oper. – Desp. Financ. – Imposto de Renda = 150,00 – 32,81 – 35,16 = 82,03
Variação do Endividamento = Dívida0 x g = 328,13 x 3,0% = 9,84
FCFE1 = LL – Inv. Líquido + Variação do Endividamento = 82,03 – 0,00 + 9,84 = 91,88
EqV = FCFE1 / (re – g) = 91,88 / (15,0% – 3,0%) = 765,63
FV = EqV + dívida líquida = 765,63 + 328,13 = 1.093,75
Pode-se observar que ambas as abordagens (FCFF e FCFE) resultam nos mesmos valores (FV e EqV). Repare que, nesta segunda situação, a Variação do Endividamento tem a função de “devolver” ao fluxo de caixa do acionista a parcela da despesa financeira, embutida no lucro líquido, que corresponde à variação da inflação e que deve ser incorporada ao endividamento para que a dívida cresça a inflação de maneira a manter constante a relação D/(D+E), uma vez que o firm value cresce inflação!
Lembre-se de que a despesa financeira é composta da (i) inflação aplicada à dívida mais (ii) a taxa real aplicada a dívida corrigida pela inflação, ou seja:
Desp. Financeira = Dívida x inflação + Dívida x (1 + inflação) x ((1 + rd)/(1 + inflação) -1) = 328,13 x 3,0% + 328,13 x (1 + 3,0%) x ((1 + 10,0%)/(1 + 3,0%) – 1) = 9,84 + 22,97 = 32,81
Sendo que a parcela da despesa financeira correspondente à correção pela inflação será capitalizada e não é uma despesa caixa ($ 9,84), que é o que se propõe assumir como variação do endividamento.
Portanto, a variação do endividamento tem a função de expurgar da despesa financeira (que está contida no lucro líquido, base da perpetuidade) a parcela que será capitalizada e, portanto, não é caixa (Serra & Fávero, 2018).
Exemplo Completo
O segundo exemplo trata do contexto mais usual em avaliação de empresas, em que a perpetuidade é defasada. O horizonte de projeção é de 3 anos. O Quadro 2 detalha as características da empresa (Empresa 2). (Quadro 2: Clique aqui)
Portanto:
WACC = D/(D+E) x rd x (1-t) + E/(D+E) x re = 20,0% x 7,0% x (1 – 30,0%) + 80,0% x 10,4% = 9,3%
A Tabela 2 apresenta os valores dos 3 anos projetados (DRE, Balanço, FCFF e FCFE). A dívida da empresa foi projetada para manter a sua representatividade de 20,0% do capital da empresa (portanto, a partir do firm value calculado ano-a-ano; estimado a partir do FCFF). (Tabela 2: Clique aqui).
A perpetuidade começa no ano 4. Considerou-se, seguindo Bradley e Jarrel (2008) e Serra e Fávero (2018), investimento em ativo fixo líquido igual a zero, uma vez que a empresa crescerá, na perpetuidade, a inflação (assumindo a hipótese da competitive equilibrium, tem-se que o crescimento real não agrega valor e pode ser desconsiderado na análise).
A perpetuidade, na abordagem da firma, é:
Perp3 = FCFF4/(WACC – g) = FCFFAj3 x (1 + g)/(WACC – g)
Ou seja, o FCFF4 é construído com base no FCFF3, porém, ajustado (FCFFAj3) para (i) igualar CAPEX à depreciação e (ii) considerar investimento em Capital de Giro Líquido necessário para o patamar de crescimento da inflação.
O investimento em CGL do FCFFAj3 é calculado como (Serra & Wickert, 2019):
InvCGL4 = CGL4 – CGL3 = CLG3 x (1 + infl) – CGL3 = CGL3 x infl
InvCGL Aj3 = InvCGL4 / (1+infl) = CGL3 x infl / (1 + infl) = 60,00 x 3,0% / (1 + 3,0%) = 1,75
Sendo assim:
FCFFAj3 = R. Oper.3 – IR Oper.3 – (CAPEX – DA) – InvCGL Aj3 = 120,00 – 36,00 – 0,00 -1,75 = 82,25
Portanto (considerando todas as casas decimais em FCFFAj3, não mostradas no texto):
Perp3 = FCFFAj3 x (1 + g) / (WACC – g) = 82,25 x (1 + 3,0%) / (9,3% – 3,0%) = 1.344,76
Logo, FV é $ 1.120,60, deduzido da dívida líquida de $ 224,12, obtém-se EqV de $ 896,48.
A perpetuidade, na abordagem do acionista, é:
Perp3 = FCFE4/(WACC – g)
Serra e Wickert (2019) sugerem construir o FCFE4 a partir dos parâmetros do próprio ano 4. Portanto, inicialmente, calcula-se o lucro líquido do ano 4:
LL4 = R. Oper.4 – Desp.Fin.4 – IR4 = (R. Oper.3 x (1 + infl) – Dívida3 x rd) x (1 – t) = (120,00 x (1 + 3,0%) – 268,95 x 7,0%) x (1 – 30,0%) = 73,34
O FCFE4 é construído (i) igualando CAPEX à depreciação e (ii) considerando investimento em Capital de Giro Líquido necessário para o patamar de crescimento da inflação.
O investimento em CGL do FCFE4 é calculado como:
InvCGL4 = CGL4 – CGL3 = CLG3 x (1 + infl) – CGL3 = CGL3 x infl = 60,00 x 3,0% = 1,80
A variação do endividamento segue a orientação do presente artigo:
Var.Endiv.4 = Dívida3 x infl = 268,95 x 3,0% = 8,07
Sendo assim:
FCFE4 = LL4 – (CAPEX – DA) – InvCGL Aj3 + Var. Endiv. = 73,34 – 0,00 -1,80 + 8,07 = 79,61
Portanto (considerando todas as casas decimais em FCFFAj3, porém, não mostradas no texto):
Perp3 = FCFE4 /(re – g) = 79,61 / (10,4% – 3,0%) = 1.075,81
Logo, EqV é $ 896,48, acrescido da dívida líquida de $ 224,12, obtém-se FV de $ 1.120,60.
Note que a despesa financeira do ano 4 pode ser decomposta em correção pela inflação de 8,07 (268,95 x 3,0%) e juros real de 10,76 (268,95 x (1 + 3,0%) x ((1 + 7,0%)/(1 + 3,0%) – 1)). A primeira parcela corresponde ao crescimento da dívida para acompanhar o crescimento do firm value (é capitalizada), portanto, não é efetivamente paga. Como o fluxo de caixa do acionista começa pelo lucro líquido, portanto, considera a despesa financeira integralmente como saída de caixa e, em a primeira parcela da despesa financeira não sendo caixa, ela deve ser “devolvida” ao fluxo de caixa por meio da variação do endividamento.
Considerações Finais
O objetivo deste artigo é argumentar que a variação do endividamento para construção de perpetuidades em avaliação de empresas por fluxo de caixa descontado pela abordagem do acionista seja estimada por meio da expressão:
Variação do Endividamenton+1 = Dívidan x g
Sendo n+1 o primeiro ano da perpetuidade, n o ano anterior ao primeiro ano da perpetuidade (ou seja, o último ano do horizonte de projeção) e g a taxa de crescimento da perpetuidade.
As razões para este ajuste são:
a. o crescimento do firm value, ano-a-ano, na perpetuidade, é equivalente à taxa de crescimento,
b. para manter a representatividade da dívida no capital da empresa (D/(D+E)) constante durante todos os anos da perpetuidade, é necessário impor o mesmo crescimento do firm value à dívida, ou seja, é necessário impor a ela o crescimento da perpetuidade, e
c. portanto, Variação do Endividamenton+1 = Dívidan+1 – Dívidan = Dívidan x (1 + g) – Dívidan, ou seja, o que já foi apresentado acima.
Referências
Bradley, M.H.: & Jarrel, G.A. (2008). Expected inflation and the constant-growth valuation model, Journal of Applied Corporate Finance, 20(2): 66-78.
Serra, R.G. (2018). Reconciling FCFF and FCFE in Nominal and Real Models (working paper). Disponível em http://ssrn.com/abstract=3244133.
Serra, R.G.; & Fávero, L.P. (2018). FCFE with inflation: how to avoid terminal value pitfall (working paper). Disponível em http://ssrn.com/abstract=3025171.
Serra, R.G.; & Wickert, M. (2019). Valuation: guia fundamental e modelagem em Excel®, São Paulo: Altas.
Por: RICARDO GOULART SERRA - Pós-doutor e doutor (FEA/USP), MBA Finanças (Insper) e engenheiro (POLI/USP). É professor pesquisador de finanças na FECAP, professor de pós-graduação lato-senso no Insper e ex-professor da FEA/USP. Tem vivência profissional em instituições financeiras (indosuez Capital e Banco Santander Brasil) e em empresas (Net e Even). Autor de artigos acadêmicos publicados em revistas científicas no Brasil e no exterior. Autor de livros e capítulos de livros.
Fonte: Gennegociosegestao.com.br/
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