Princípio da nação mais favorecida e a extensão automática de benefícios e vantagem tributárias
- Contador SC
- 29 de jul. de 2022
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O Estado brasileiro é signatário do Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1994 (Gatt 1994 – General Agreement on Tariffs and Trade), incorporado ao direito interno pelo Decreto Legislativo nº 30/1994, promulgado pelo Decreto nº 1.355/1994. Dessa forma, como membro da OMC (Organização Mundial do Comércio), comprometeu-se a eliminar tratamentos anti-isonômicos nas relações comerciais com outros países. Um dos princípios mais relevantes na operacionaliza a isonomia no comércio exterior encontra-se prevista no Artigo I do Gatt 1994:
“Artigo I
Tratamento Geral de Nação mais Favorecida
1.1 Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma parte contratante em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produto similar[1], originário do território de cada uma das outras partes contratantes ou ao mesmo destinado, Êste dispositivo se refere aos direitos aduaneiros e encargos de tôda a natureza que gravem a importação ou a exportação, ou a elas se relacionem, aos que recaiam sôbre as transferências internacionais de fundos para pagamento de importações e exportações, digam respeito ao método de arrecadação dêsses direitos e encargos ou ao conjunto de regulamentos ou formalidades estabelecidos em conexão com a importação e exportação bem como aos assuntos incluídos nos §§ 1 e 2 do art. III.
1.2 As disposições do parágrafo primeiro do presente artigo não importarão na eliminação de quaisquer preferências com respeito a direitos aduaneiros ou encargos que não ultrapassem os limites fixados no § 3 dêste artigo e que se enquadrem nas seguintes descrições:
(a) preferências em vigor exclusivamente entre dois ou mais dos territórios enumerados no Anexo A, subordinadas às condições nele estipuladas;
(b) preferências em vigor exclusivamente entre dois ou mais territórios que, em 1 de julho de 1939, estavam sujeitos a uma soberania comum ou unidos por laços de proteção ou suzerania [sic.], os quais são enumerados nos Anexos B, C e D, dentro das condições nos mesmos estipulados;
(c) preferências em vigor exclusivamente entre os Estados Unidos da América e a República de Cuba;
(d) preferências em vigor exclusivamente entre países vizinhos mencionados nos Anexos E e F.
1.3 Quando não fôr fixada especificamente a margem máxima de preferência na correspondente lista anexada a êste Acôrdo, a margem de preferência sôbre qualquer produto em relação ao qual seja permitida uma, preferência, de conformidade com o § 2º do presente artigo, não poderá exceder:
(a) relativamente aos direitos ou encargos sôbre qualquer produto descrito nessa lista, a diferença entre a taxa de nação mais favorecida e a taxa preferencial, que figuram na mesma lista; se não houver estipulação da taxa preferencial, esta, para os fins de aplicação do presente parágrafo, passará a ser a que estava em vigor em 10 de abril de 1947; se nenhuma taxa de nação mais favorecida fôr fixada, a margem não ultrapassará a diferença, existente em 10 de abril de 1947, entre a taxa aplicável à nação mais favorecida e a taxa preferencial;
(b) no tocante aos direitos ou encargos sôbre qualquer produto não descrito na lista correspondente à diferença, existente em 10 de abril de 1947, entre a taxa aplicável à nação mais favorecida e a taxa preferencial.”
Cláusula ou princípio da nação mais favorecida
A cláusula ou princípio da nação mais favorecida estabelece que, ressalvadas as exceções previstas no próprio Gatt 1994[2], toda vantagem, favor, imunidade ou privilégio, inclusive de natureza tributária, concedido a produtos originários de um país devem ser estendidos – imediata e incondicionalmente – para similares importados dos demais Estados-membros, inclusive quando o país contemplado não é membro da OMC. A não generalização imediata do benefício – ou sua extensão em caráter condicional – implica a adoção da origem como critério discriminatório, violando o art. 1.1.
A aplicabilidade do princípio é norteada pela similaridade dos produtos (like products). Apesar disso, não há uma definição desse conceito-chave no Gatt. Na vigência do Gatt 1947, foi adotado o critério da classificação tarifária para sua determinação. Porém, após 1994, o Órgão de Apelação da OMC passou a entender necessária uma investigação da natureza e da extensão da relação competitiva entre os produtos em cada caso concreto, considerando especialmente quatro fatores: (i) características físicas; (ii) usos finais; (iii) gostos e hábitos dos consumidores; e (iv) a classificação tarifária[3].
Jurisprudência do STF
A Jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) entende que a cláusula da nação mais favorecida autoriza extensão pelo Judiciário do benefício fiscal para os importadores locais de produtos originários de países não contemplados. Essa interpretação foi consolidada ao longo dos anos, sobretudo das décadas de 1970 e 1980. Na época, havia por parte dos Ministros da Corte uma preocupação em garantir a observância do Gatt internamente para evitar consequências gravosas aos interesses comerciais do País no âmbito internacional[4]. Essa exegese não contrasta com a interpretação mais recente que não admite ao “[…] Poder Judiciário, a pretexto de conceder tratamento isonômico, atuar como legislador positivo para estabelecer benefícios tributários não previstos em lei, sob pena de afronta ao princípio fundamental da separação dos poderes”[5]. Isso porque a incondicionalidade da cláusula da nação mais favorecida implica a eficácia extensiva automática de quaisquer vantagens, favores, imunidades ou privilégios, inclusive tributários. O Poder Judiciário, ao determinar essa providência, não está inovando na ordem jurídica, mas apenas declarando um direito subjetivo do importador que decorre diretamente do art. 1.1 do Gatt.
Para se compreender esse efeito, deve-se ter presente que a cláusula da nação mais favorecida não surgiu pela primeira vez no ano de 1947, quando foi celebrado o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Trata-se de uma modalidade negocial que, na história das relações bilaterais, já era bastante adotada pelos países em acordos e tratados internacionais. Havia dois modelos de pactuação: o condicionado e o incondicionado. No primeiro, salvo no caso de vantagens gratuitas ou unilaterais, a extensão depende de uma compensação por parte do Estado não contemplado equivalente à negociada com o terceiro beneficiado. No segundo, como ensina Achille Cutrera, no clássico Principii di Diritto e Política Doganale, a cláusula “[…] opera ipso iure e o Estado que a estipulou em seu favor beneficia-se imediatamente das maiores concessões comerciais ou tarifárias que o outro Contratante estipulou com outros Estados”[6]. No ano de 1947, a experiência europeia já considerava o modelo condicional um “remédio pior que a doença”[7], em razão das inúmeras controvérsias que suscitava. Por isso, foi adotado no Gatt o modelo incondicionado com extensão automática da vantagem.
Também não impede a extensão automática de vantagens a exigência de lei específica prevista no § 6º do art. 150 da Constituição Federal, na redação da Emenda nº 03/1993. Esse preceito estabelece que: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g”.
O dispositivo faz referência à necessidade de “lei específica, federal, estadual ou municipal”, o que remete aos incentivos e isenções fiscais decorrentes do exercício da competência dos entes federativos no plano interno. Nas relações bilaterais e multilaterais no âmbito internacional, não há atuação da União, dos Estados-membros ou dos Municípios, mas da República Federativa do Brasil como Estado-total[8]. Daí a inaplicabilidade da exigência de lei específica federal aos benefícios pactuados pelo País no âmbito internacional. Esses, após a incorporação dos tratados e acordos internacionais à ordem jurídica, são válidos independentemente de lei específica. Do contrário, o art. 150, § 6º, anularia a competência prevista no art. 21, I, da Lei Maior[9], o que não é compatível com a unidade do sistema constitucional.
Solon Sehn
Advogado, graduado em Direito pela UFPR, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Ex-Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Membro da Câmara de Assuntos Legislativos e Tributários da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc). Professor conferencista no curso de especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet). Professor convidado das especializações em direito aduaneiro da Faculdade de Direito de Curitiba (UniCuritiba) e em direito da aduana e do comércio exterior da Univali, entre outras instituições de ensino.
Fonte: http://genjuridico.com.br
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