Reavaliação da transação tributária federal: primeira parte
- Contador SC
- 3 de nov. de 2022
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Passados alguns anos da criação da transação tributária federal[1], é importante reavaliar[2] o tema como ele atualmente se apresenta – um método de resolução de litígios tributários que caminha para a consolidação – e verificar se há pontos passíveis de aperfeiçoamento.
A reavaliação a seguir feita é fruto de prolongadas discussões dos autores sobre o tema, muitas delas ocorridas nas reuniões e eventos do Grupo de Pesquisa “Métodos Adequados de Resolução de Disputa em Matéria Tributária”, do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV Direito SP.
Transação tributária federal e o modelo por adesão
Três temas têm chamado a atenção nestas discussões: (i) o modelo por adesão adotado na grande maioria das transações celebradas, com destaque para aquelas firmadas no contexto da chamada transação na cobrança (Capítulo II da Lei 13.988/2020); (ii) as novidades do novo regime da transação na cobrança (Lei 14.375/2022); e (iii) o regime jurídico da transação por adesão no contencioso tributário federal de relevante e disseminada controvérsia jurídica (a chamada transação de teses). Em razão das limitações de espaço, apenas o primeiro tema será abordado neste artigo, ficando os demais para os próximos textos dos autores.
Seguindo o modelo definido pela Lei 13.988/2020 e por sua regulamentação infralegal, a transação tributária federal é celebrada, na maior parte dos casos, por adesão a critérios unilateralmente estabelecidos pela administração tributária.
Nesse sentido, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) fixou, por exclusão, os casos de transação por adesão: inicialmente a transação individual – na qual há efetiva negociação e concessões mútuas entre administração tributária e contribuintes – estaria limitada a determinadas hipóteses, como a de devedores cujo valor consolidado dos débitos fosse superior a R$ 15 milhões, devedores falidos ou em recuperação judicial ou extrajudicial e devedores cujo valor consolidado dos débitos fosse igual ou superior a R$ 1 milhão, estando tais débitos suspensos por decisão judicial ou garantidos por penhora, carta de fiança ou seguro garantia. Fora desses casos, a transação deveria ser celebrada por adesão.
Tal limitação constou no artigo 32 da Portaria PGFN nº 9.917/2020 e foi recentemente redefinida pelo artigo 46 da Portaria PGFN nº 6.757/2022. De acordo com a nova Portaria, a transação individual foi ampliada para abranger, entre outras situações, devedores cujo valor consolidado dos débitos seja superior a R$ 10 milhões, tendo sido mantidas as demais hipóteses acima referidas. Além disso, passou-se a prever a transação individual simplificada, que compreende débitos de montante superior a R$ 1 milhão e inferior a R$ 10 milhões e que entrará em vigor em 1/11/2022. Para os casos não previstos no âmbito da transação individual/transação individual simplificada, resta a celebração de transação por adesão.
As fronteiras da transação por adesão/transação individual foram definidas de modo semelhante pela RFB. A Portaria RFB nº 208/2022, que regulamentou a transação na cobrança do crédito tributário em contencioso administrativo fiscal, permitiu a transação individual nos casos, entre outros, de devedores cujo valor consolidado dos débitos é superior a R$ 10 milhões, devedores falidos ou em recuperação judicial ou extrajudicial e devedores cujo valor consolidado dos débitos é igual ou superior a R$ 1 milhão, estando tais débitos suspensos por decisão judicial ou garantidos por penhora, carta de fiança ou seguro garantia (artigo 40). Tal Portaria também previu (artigo 40, §1º) a transação individual simplificada nos mesmos moldes da Portaria PGFN nº 6.757/2022.
A despeito das alterações recentemente empreendidas, como vêm sustentando os autores deste artigo[3], este modelo por adesão não pode ser considerado transação propriamente dita, pois demanda o cumprimento de condições inegociáveis pelo contribuinte: o âmbito possível de negociação é reduzido à mera adesão do particular a critérios fixados unilateralmente pela administração tributária.
Transação exige, de fato, concessões recíprocas. É isto o que determina o artigo 171 do CTN, reverberado na exposição de motivos que acompanhou a MP nº 899/2019 (convertida na Lei 13.988/2020): “Mediante concessões mútuas, credor e devedor, podem socorrer-se do instituto que pendia de regulamentação, obtendo solução adequada ao litígio tributário.” Tal reciprocidade de concessões está claramente ausente no modelo por adesão da transação tributária federal: como quem apenas adere não verdadeiramente negocia, isto significa que este modelo não constitui, em realidade, transação, mas sim uma mistura de institutos, que envolve parcelamento, anistia e remissão.
Transação por proposta individual
Já na transação por proposta individual, o cenário é diverso. Ela implica negociação e reflete mais adequadamente a ideia de concessões mútuas entre administração tributária e contribuinte, constituindo, pois, verdadeira transação tributária e, assim, o regime que deveria ser adotado com a maior abrangência possível.
Como isto não ocorre, com evidente predominância do modelo por adesão, algumas observações se impõem. Quais são os possíveis efeitos jurídicos do reconhecimento desta distinção entre os modelos por adesão/individual na seara legislativa da transação federal? A questão não é meramente terminológica ou de fundo acadêmico. As limitações de espaço permitem tratar somente de alguns desses possíveis efeitos.
Lei de Responsabilidade Fiscal
O primeiro se refere à descaracterização da transação por adesão como renúncia de receita, nos termos do artigo 3º da Lei Complementar nº 174/2020. Ora, não se tratando de transação stricto sensu, haveria que se cogitar da dispensa de aplicação das regras de responsabilidade fiscal no presente caso, mais notadamente o artigo 14 da LC 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)? Há argumentos para se alegar que não. Nessa hipótese, as mudanças à Lei 13.988/2020 pela Lei 14.375/2022 devem ser vistas sob outras luzes.
Apenas para citar alguns pontos, houve alteração da transação na cobrança para, entre outras medidas, ampliar o teto de redução do crédito tributário (de 50% para 65%) e alargar o prazo geral de parcelamento do crédito tributário (de 84 para 120 meses – artigo 10). É possível questionar se, com isto, a eventual renúncia de receita no modelo por adesão passaria a ser potencialmente maior.
Contudo, a questão não se limita ao cumprimento ou mesmo aplicação do artigo 14 da LRF. A Lei 14.375/2022 parece já ter um problema formal na sua origem: ela decorre de projeto de lei de conversão (PLV nº 12/2022) da MP nº 1.090/2021, que tratava, originalmente, da renegociação de dívidas do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), e que passou a cuidar da transação federal[4] – um claro exemplo do chamado “jabuti”[5].
Para completar, as alterações da Lei 13.988/2020 pela Lei 14.375/2022 decorrem, como se lê em Parecer de Plenário à MP nº 1.090/2021 de autoria do deputado Hugo Motta, da iniciativa deste parlamentar[6]. Ao que parece, e talvez em razão do artigo 3º da Lei Complementar nº 174/2020, não houve estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro e não houve análise do Congresso Nacional acerca da adequação financeira e orçamentária de tais modificações.
Em linha com o artigo 14 da LRF, aduz o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que: “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.” Em se caracterizando as mudanças feitas pela Lei 14.375/2022 na transação federal, como renúncia de receita e não havendo estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro, haveria evidente vício. Em situações como esta, o STF poderia reconhecer a inconstitucionalidade formal da respectiva legislação[7], com severo prejuízo à consolidação do regime transacional federal.
O prejuízo à consolidação da transação federal pode vir ainda de outra fonte, ligada a considerações de isonomia. A diferenciação dos modelos por adesão/individual com base na regra do valor dos débitos (anteriormente, com aplicação do modelo individual para débitos superiores a R$ 15 milhões; hoje, com sua aplicação a débitos superiores a R$ 10 milhões e, futuramente, com adoção da transação individual simplificada para débitos de montante superior a R$ 1 milhão e inferior a R$ 10 milhões) não constitui discrimen legítimo para conferir tratamento diferenciado aos devedores. Note-se que o modelo prevalecente reserva apenas a alguns contribuintes a via da transação efetiva (individual), enquanto para a maioria resta uma mistura de parcelamento/anistia/remissão (adesão), com critérios estabelecidos em normas infralegais.[8] Ademais, a ofensa a igualdade ainda pode ser suscitada à luz da desconsideração da diversidade regional e da realidade econômica de cada unidade da Federação[9],[10]
Desse modo, faz-se urgente que a administração tributária reveja essas questões (observando, evidentemente, suas limitações materiais), passando a adotar o adequado tratamento financeiro e orçamentário em relação ao modelo de “transação” por adesão (artigo 14 da LRF e artigo 113 do ADCT), além de ampliar o modelo individual da transação tributária federal para abranger um número maior de devedores, considerando os contextos regional e econômico do ente federativo no qual ela é celebrada.
Com isto, espera-se que sejam afastados importantes obstáculos à consolidação da transação tributária federal e, inclusive, evitada a criação de um contencioso que a envolva, o que desvirtuaria um dos principais objetivos desse meio autocompositivo: a redução da litigiosidade no país.
Fonte: Jota
Sobre os autores
TATHIANE PISCITELLI – Professora da FGV DIREITO SP e coordenadora do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição. Doutora e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenadora acadêmica do Grupo de Pesquisa “Métodos Adequados de Resolução de Disputa em Matéria Tributária” do Núcleo de Direito Tributário da FGV DIREITO SP
ANDRÉ LUIZ FONSECA FERNANDES – Mestrando em Direito Tributário pela FGV DIREITO SP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro-Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Métodos Adequados de Resolução de Disputa em Matéria Tributária” do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP. Advogado em SP
Fonte: Genjuridico.com.br/
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